As lendas, crenças e superstições populares fazem parte do imaginário ou subconsciente coletivo das populações do Norte ao Sul de Portugal. Algumas foram-se perdendo no tempo e delas hoje só se encontram reminiscências, outras perduraram, graças aos legados orais passados de geração em geração e são hoje motivo de orgulho e de preservação por parte das populações. Através delas traçam-se aspetos únicos das vivências de uma comunidade. Desde cedo e por serem motivo de afronta à ordem e poder instituídos, constituíram motivo de preocupação, para as autoridades civis e eclesiásticas, que se preocuparam em legislar sobre esses fenómenos. O mais antigo documento da legislação civil conhecido é uma postura emanada pela Câmara de Lisboa em 1385, eclesiásticamente, são as Constituições do Arcebispado de Évora de 1534.
Não sendo exceção à regra, Amarante é também povoada por algumas lendas e estórias, destacando-se entre elas, a do Diabo e a Diaba.
Reza a História que até ao ano de 1809 a Sacristia do Convento Dominicano de São Gonçalo, joia da arquitetura seiscentista portuguesa, albergava um casal de mafarricos oriundos do Averno que, apesar da sua origem, granjeavam de larga simpatia por parte dos monges - que se serviam deles para atemorizar os confessandos - bem como das damas e cavalheiros da terra que com eles já se haviam familiarizado. Com carateres sexuais fortemente vincados e de aspeto pagão, crê-se que terão sido obra de antigos Brahmanes - grupo religioso indiano com inclinação pelas superstições aborígenes - trazidos das longínquas paragens do Império que então se estendia à Índia por mercadores lusitanos e que, juntos, simbolizavam a força criadora da Natureza.
Quando em abril desse ano os soldados do General Loison incendiaram e puseram a saque Amarante, desfilaram-nos pelas ruas da Vila, com as vestes sacerdotais antes de os queimarem. Expulsos os franceses os frades dominicanos, desgostosos com o desaparecimento dos seus Diabos, rapidamente procuraram substitui-los encarregando o artífice António Ferreira de Carvalho que morava para as bandas da Rua do Seixedo, próximo da Fonte do Bairro do Rego, de tal tarefa. Este, rapidamente partiu para o Alto de Pidre onde, com os seus dois ajudantes, escolheram e abateram um castanheiro fazendo, o mais fielmente possível uma réplica do casal furando-lhes, por ordem do Prior do Convento, a cabeça conseguindo deste modo pousos para a cruz e para a umbela. O resultado foi de tal modo satisfatório que o mestre entalhador passou a ser conhecido pela alcunha de Ferreira dos Diabos.
Escuros como breu, são ambos de tamanho próximo ao natural e estão sentados sobre uma pequena base cilíndrica ostentando nas cabeças um par de cornos definidores da sua proveniência e das suas intenções. Com os braços abertos têm entre os dedos de cada mão uma bola em tudo semelhante àquelas que se fazem com o miolo do pão. O Diabo veste uma pequena tanga recortada e ornada a vermelho, tem a boca cerrada por uns lábios grossos e vermelhos ao contrário da Diaba que, ostentando um colar ao pescoço tem, de forma provocadora, a língua de fora. Traja um apertado colete de mangas em tons de verde que lhe faz sobressair um voluptuoso busto, de onde sai uma espécie de fralda de camisa debruada a vermelho. Os pés, de forma inumana, são uma espécie de garras com quatro dedos abraçando umas bolas.
Um dia, já com o casal de arrenegados no local dos seus primogénitos, O Esperançoso El- -Rei D. Pedro V - reinou de 1853 a 1861 - de visita à Vila resolveu ir prestar culto a São Gonçalo e qual não terá sido o seu espanto e indignação ao dar de caras com o casal de mafarricos. De imediato mandou retirar as duas figuras de tão sagrado lugar passando estas a deambular pelo claustro. Quando em 1870 o Arcebispo de Braga, D. José Joaquim de Moura, que tutelava a Diocese de Amarante, soube da existência num dos seus templos de um casal de diabos, ainda por cima fortemente sexualizados, ordenou que fossem queimados por achar nefasta a convivência com os santos. Porém, o Prior do Convento, inconformado, limitou-se a mandá-los mutilar nos órgãos sexuais entregando-os depois à Câmara. Arredados do seu poiso passaram a deambular por um canto qualquer do Convento até que despertaram o interesse de um tal Sr. Alberto Sandeman, um cavalheiro inglês que se encontrava de visita ao templo. Com a ajuda da Sr.a Rosa Folhadella ou Rosa d`Amarante, uma muito conhecida e bem relacionada dama amarantina, que presenteou com um corte de vestido de seda, prontamente os adquiriu com o intuito de promover os vinhos que comercializava, por três libras em ouro - treze mil e quinhentos reis - tratando de os encaixotar e providenciar transporte para o seu escritório em St. Swithin`s Lane na Grã-Bretanha.
Não se julgue porém que foi fácil retirar as duas «divindades» de Amarante! Assim que as gentes amarantinas souberam, juntaram-se e, mesmo elucidadas por um escritor conterrâneo que iam uns Diabos de madeira mas que ficavam muitos outros de carne e osso, não arredaram pé opondo-se à sua ida. Com José Pinto da Pinha, exemplar patriota e chefe de família à cabeça, redigiram uma petição ao Juiz de Paz para que não permitisse a saída do casal de Diabos. Tendo o juiz deferido a petição nomeou José Pinto da Pinha seu depositário. De imediato este, ajudado por José Gonçalves, tratou de por a salvo o precioso caixote num velho forno do Convento de Santa Clara.
Perante o sucedido o Sr. Alberto Sandeman reclamou a posse do casal de arrenegados ao Governador Civil do Distrito do Porto, tendo conseguido que, por ordem do Administrador do Distrito, o Administrador do Concelho de Amarante, Visconde de Tardinhade, intimasse José Pinto da Pinha a apresentar o caixote com os Diabos do qual era fiel depositário. Desculpando-se com a natureza satânica dos mesmos tentou dizer que tinham desaparecido, prontificando-se a pagar as três libras ao proprietário ou a ir para a prisão como infiel depositário. Tal argumentação não resultou vendo-se o Sr. Pinha obrigado a restituir os Diabos ao legítimo proprietário. A caixa, sob proteção do Sr. José da Pinha e de um piquete de caçadores destacado para o efeito de São João da Pesqueira por Jorge de Soveral, tomou de imediato a direção da Estação dos Caminhos de Ferro de Caíde de onde partiram....
Chegados a Londres fizeram furor pois, por aquelas paragens, jamais se tinha visto uma “Diaba” passando a figurar em várias exposições como chamariz de visitantes e compradores. Em 1889, terão sido vistos pelos cerca de trinta e dois milhões de visitantes que percorreram a Exposição Universal de Paris e visitaram o salão de vinhos com que a casa Sandeman lá se fez representar.
Entretanto e por terras Lusitanas os amarantinos ainda não se tinham conformado com a forçada emigração dos seus Diabos de estimação clamando pela sua restituição. Um dia o Dr. Lago Cerqueira, então Ministro dos Negócios Estrangeiros, conseguiu que o Sr. Sandeman devolvesse do cativeiro o «casal de divindades» provocando o delírio nos amarantinos. De barco até Leixões. De carro até à Estação de Campanhã e de carruagem especial até à Livração, onde receberam o primeiro banho de multidão, foram transferidos para a Linha do Vale do Tâmega. Ao chegarem a Amarante, foram recebidos pela Banda da Música, pelas entidades públicas, particulares e por uma multidão exuberante. Duas juntas de bois engalanadas com um manto vermelho, de onde só despontavam os cornos e os olhos dos bichos, esperavam o casal de divindades. Formado o cortejo encabeçado pelos carros de bois que transportavam os chifrudos, seguidos pela edilidade, pela banda de música e pela população de onde sobressaíam os mais jovens, que mascarados saltavam que nem diabos por entre os demais. A encimar o cortejo seguiam diversas charangas e uma multidão montada nas burras e jericas de Canadelo. O cortejo percorreu as ruas da Vila ao som de «Aí vêm os Diabos! Lá vêm eles», durando a festa até às altas da madrugada.
Durante bastante tempo e ainda que um pouco às escondidas, o Diabo e a Diaba continuaram a gozar, da parte do povo, de uma certa veneração que no dia 24 de agosto, dia em que «o Diabo anda à solta», como vulgarmente o apelidam, as gentes da terra não trabalhavam depositando oferendas na cabeça do Diabo e da sua senhora, como dizem as gentes.
Hoje, tendo há muito sido despojados do seu poiso sagrado e de muito terem viajado, estão expostos no Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso onde, que nem duas sentinelas das trevas, sempre prontos a espantar e a assustar os mais incautos, velam pelas obras de Amadeo de Souza-Cardoso, António Carneiro, Guilherme Camarinha, Sarah Afonso, Júlio Resende, Jaime Isidoro, Vieira da Silva, Nadir Afonso e demais obras que ali se mostram.
Carlos Manuel Vieira de Sousa Teixeira
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Bibliografia
PEDROSO, Consiglieri - Contribuições para uma Mitologia Popular Portuguesa .1ª ed., Lisboa, Publicações D. Quixote, L.da, 1988, p.85-93.
PASCOAES, Teixeira de - Duplo Passeio , 1ªed., Porto, 1942, p.174-189.
MACEDO, Luís Vanzeller - Pequena História de Amarante , 2ªed., s.l., s.d.,p.65-69.
BASTO, Barros - Lenda e história por terras de Amaranto O Diabo e a Diaba .”Flor do Tâmega”, Amarante, 5 de Jun., 1921.
OLIVEIRA, Joaquim Pinto - Os Diabos Amarantinos . “Flor do Tâmega”, Amarante, s.d..
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